Pular para o conteúdo principal

Capoeira, patrimônio nacional. E o Pará?



DISCUSSÃO



Autor é historiador e membro do Malungo Centro de Capoeira Angola





Luiz Augusto Pinheiro Leal
Especial para O LIBERAL (Edição de 18/07/2008)



No último dia 15 de julho, após 118 anos de sua criminalização no Código Penal brasileiro, a capoeira foi reconhecida como patrimônio cultural brasileiro. A decisão formal foi aclamada pelos 22 membros do Conselho do IPHAN (Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional) em Salvador, Bahia. Entre os benefícios para os capoeiristas estaria o reconhecimento do ofício dos mestres como uma profissão e a classificação das rodas de capoeira como patrimônio imaterial. Na prática os benefícios poderão demorar para se concretizar, mas, sem dúvida, é uma vitória para todos os capoeiras que dedicaram sua vida para este importante saber cultural.
Mas afinal, o que seria a capoeira? Por que deveria ser considerada patrimônio nacional, se geralmente as pessoas dizem que se trata de uma prática cultural baiana? Enfim, o que isso tudo tem a ver com o Pará? Questionamentos como estes são frutos do desconhecimento que a maioria das pessoas tem em relação à história da cultura negra no Brasil. Sabemos que é recente (de 2003) a lei que institui o ensino de história e cultura africana e afro-brasileira no sistema de ensino nacional. Desse modo, se alguém queria saber algo sobre o samba, o lundu, o carimbó ou a capoeira, não deveria procurar a sala de aula. Só os mestres, os guardiães do conhecimento ancestral, poderiam informar os interessados e, mesmo assim, com o risco de serem ridicularizados.
A capoeira é um saber que confunde os leigos que a observam nas praças e espaços alternativos onde ela é praticada. É dança? É luta? É esporte? Os parâmetros tradicionais de comparação nunca se enquadram na capoeira. Onde já se viu uma dança onde o dançarino é cantador, tocador e dançarino ao mesmo tempo? Que dança seria essa em que os pares se comunicam não apenas pelo ritmo, mas também pelo que é cantado ou tocado nas variações do berimbau, sem coreografia fixa?
Por outro lado, como poderíamos entender uma luta em que os contendores parecem brincar, sorriem e prolongam sua ação através de golpes precisos, mas calculados para prolongar o jogo? Que esporte é esse onde as regras de movimentação são livres e o canto e a música se interrelacionam? Quem já viu um atleta confeccionar seu instrumento esportivo? Na capoeira isso é obrigação.
A capoeira pode ser entendida como um jogo. Um jogo em que a vida dos participantes, ou brincantes, se reflete. Um jogo onde o canto pode ser mais poderoso para derrotar o 'inimigo' do que um certeiro golpe. A música está para a capoeira como o alimento está para o corpo. Contudo, a riqueza contida na capoeira e, ao mesmo tempo, sua originalidade já confundiu muita gente. Um exemplo disso é o esforço que organizações de origens diversas produzem para tirar proveito das características da capoeira como educação física.
A capoeira não é simples educação física. É música, é artesanato, é poesia, é, enfim, criatividade artística. Os mestres se formam através das experiências vividas. Não são formados em bancos escolares. Tem vida árdua para conciliar a sua sobrevivência cotidiana com a prática da capoeira.
PERSEGUIÇÃO
Quando refletimos sobre a capoeira como patrimônio nacional é bom que tenhamos em mente uma informação que foi apagada de nossa memória coletiva. O Pará, tal como o Rio de Janeiro, tem uma grande dívida para com a capoeira e os capoeiristas. No Pará, dezenas de capoeiras, inclusive mulheres, foram presos e deportados para o Amapá após a proclamação da República, em 1889. Houve uma perseguição massiva a todos os que eram acusados de praticar capoeira. Os capoeiras eram acusados de vadiagem, apesar de que todas as listas de capoeiras presos em 1890 informarem que eles possuíam trabalho. Tratava-se de um golpe contra mais uma prática cultural de origem negra.
Na época, o samba, o retumbão, o lundu, o carimbó e o candomblé também eram marginalizados. Vivia-se um projeto nacional de embranquecimento cultural do país. A identidade nacional estava em jogo e o espelho cultural das elites ainda era a Europa. A capoeira, ao contrário das práticas citadas, sofreu uma retaliação nacional devido suas características de atuação na política partidária republicana, tal como fazia na época da monarquia.
Se o Pará foi cúmplice na marginalização da capoeira, que ele seja também em sua valorização como patrimônio nacional. A memória da capoeira paraense precisa ser resgatada. Nomes como o de Pé de Bola e Cabralzinho, ilustres capoeiras paraenses, precisam ser conhecidos como nossos heróis capoeiras. Tal como Zumbi virou símbolo mítico da capoeira nos quilombos, o nosso negro Patriota pode ser imaginado como um grande capoeira do tempo da Cabanagem, afinal a capoeira foi registrada entre nós desde meados de 1849.
Cabe reintegrar a capoeira paraense ao seu lugar de merecimento. Iniciativas, como a lei municipal 8.318, de 20 de maio 2004 (que institui a capoeira no currículo escolar do ensino fundamental de Belém, como conteúdo transversal), já foram tomadas cabe sua implementação definitiva e a imitação da iniciativa por parte do estado. Por outro lado, instituições federais no Pará também pode desenvolver projetos próprios de valorização da capoeira em seu espaço de pesquisa ou estudo.
Que o exemplo da expulsão da capoeira angola de uma importante instituição federal de ensino, em Belém, não seja o único parâmetro seguido. Que o carimbó siga o mesmo caminho.

Comentários

  1. Valeu camarado, tu é Malungo mesmo!Belo texto o do malungo Augusto Leal. Prova que é bom não apenas jogando capoeira mas também com as palavras. Parabens pelo seu compromisso com o Malumgo Centro de Capoeira Angola e co o nosso patrimônio cultural.

    Contramestre Bel

    ResponderExcluir
  2. ALÔ

    sou capoerista moçambicano. é com muito gosto que vejo um texto tão lindo e com boas notícias sobre a valorização da capoeira.

    capoeira não é apenas desporto, luta, jogo, dança é mais uma forma e uma força que leva ao crescimento da identidade Negra. com a capoeira vimos a mãe àfrica ser conhecida e respeitada.

    Bem haja a capoeira!

    ResponderExcluir
  3. Valeu, camarada Crocodilo. Torço que nosso elo com a mãe África frutifique e amadureça cada vez mais. Encontramos amigos moçambicanos, de Maputo, em Belém e na Bahia. Espero que te mantenhas firme na luta. Um grande abraço, Augusto Leal.

    ResponderExcluir

Postar um comentário

Postagens mais visitadas deste blog

"História vista de baixo" - o Contramestre Bel é o mais novo colunista do Portal FS

Samba, Cabaré e Polícia na Feira de outrora Denominada princesa do sertão baiano, Feira de Santana já gozava, nas décadas de 1930 e 1940, de importante prestígio, já tendo sido, inclusive, objeto das mágicas lentes de Pierre Verger, artista francês radicado na Bahia. Sua história tem sido ao longo dos anos associada a uma cidade que tem origem em um importante comércio de gado e sua principal identidade social constituída em torno da “cidade comercial”. Entretanto, pode-se explorar outros importantes aspectos da história de Feira de Santana, a exemplo das experiências culturais negro-africanas ali constituídas, este é o caso dos sambas que tinham como cenário as contagiosas noites dos cabarés feirenses. Este breve ensaio de reflexão, que ora apresento aos leitores, inaugura a mais nova coluna do PORTAL FS, intitulada “História vista de baixo”, justamente por se tratar das histórias daqueles indivíduos, grupos e culturas que não conheceram a pena que pintou os compêndios sobre a Bahia

Vicente Sales, autor de "O negro no Pará", recebe título de Doutor Honoris Causa

O Malungo Centro de Capoeira Angola, parabeniza o professor Vicente Sale pelo reconhecimento oficial de sua obra, a qual inclui importantes estudos sobre a cultura afro-amazônica. O professor Vicente Sales é um dos responsáveis pela introdução dos estudos da capoeira no Para tendo influenciado o treineu Algusto Leal em seus trabalho de pesquisa especialmente o que deu oriegem ao livro "A política da capoeiragem" (Edufba, 2008), bibliografia de consulta obrigatória para as atuais pesquisa sobre o tema no Brasil. Salve então ao mestre Vicente Sales. Segue a nota extraída do site da UFPA: Um dos intelectuais mais notáveis do Estado, Vicente Juarimbu Salles, recebeu da Universidade Federal do Pará (UFPA) a outorga do título Doutor Honoris Causa, o mais alto dos graus universitários, normalmente concedido a personalidades que tenham se distinguido pelo saber ou pela atuação em prol das Artes, das Ciências, da Filosofia, das Letras ou do melhor entendimento entre os povos. A conces

FEIRA DE SANTANA: A CAPOEIRA NA “PRINCESA DO SERTÃO”

Texto extraído do livro: “A capoeira na Bahia: História e Cultura Afro-Brasileira” (Instituto Maria Quitéria – no prelo). Autoria do Contramestre Bel, mais um fruto dos projetos do Malungo. A origem da Cidade de Feira de Santana remete ao período colonial. Surgiu de um povoado humilde, onde as casas eram cobertas com palhas, piso de terra batida e paredes de barro amassado, conhecido no sertão nordestino como taipa. As casas e ruas eram iluminadas com lamparinas e lampiões a querosene. Localizada a aproximadamente 110km de distância da Cidade do Salvador, no sentido norte da Bahia, e gozando de certo prestígio no tocante à autonomia política e econômica da Capital, Feira de Santana se tornou ao longo do tempo a maior cidade do interior baiano, com uma população de quase 600 mil habitantes e um dos maiores centros de capoeira do Nordeste. Por razões como estas, em 1919 o senhor Ruy Barbosa, ilustre político baiano, a batizou como “Princesa do Sertão”. A história da Capoeira e