A impunidade.
Esse é o título do editorial do Jornal do Recife que, ao ser reproduzido no
Jornal Pequeno, acompanhou a charge ao lado em uma edição de 1907.
Curiosamente, conforme vários autores, nesse ano estaria em vias de conclusão a
repressão sistemática à capoeira do Recife promovida pelo chefe de polícia
Manoel dos Santos Moreira (1904-1908). Foi com base nesses autores que se
difundiu entre capoeiristas pernambucanos da atualidade a interpretação segundo
a qual a repressão republicana teria erradicado a capoeira do Recife nos
primeiros anos do século passado. Porém, ainda assim é àquele mesmo passado que
se alude ao falar da tradição da capoeira pernambucana, marcadamente de rua e
herdeira dos antigos brabos e valentões.
Como,
portanto, uma prática que foi reprimida e morreu com os seus praticantes há
mais de cem anos poderia ter alguma relação com aquilo que hoje se chama de
capoeira no Recife? Uma resposta talvez possa ser encontrada ao se abrir mão do
hábito, muito disseminado, de considerar a identidade “capoeira” como algo
imanente aos indivíduos que eram assim classificados no passado.
Mas qual o
problema de percebê-los dessa forma? Em primeiro lugar, isso tem como
consequência toma-los sempre em conjunto (“os capoeiras”), como se eles
naturalmente constituíssem uma comunidade de interesses, com inimigos em comum
– sendo a polícia o principal deles. Isso dá margem a toda uma série de
dualidades (repressores/reprimidos, elite/populares), nas quais os homens
classificados como capoeiras pelas fontes são, em bloco, situados em um dos
polos. Por mais estranho que possa parecer, a historiografia chegou até mesmo a
atribuir essa identidade coletiva a pessoas que nunca a receberam nos
documentos consultados, reservando para si o papel de polícia ao “identificar
os capoeiras” mesmo quando eles não apareceram como tais.
Na imprensa
entre final do século XIX e início do século XX, muitas vezes essa questão foi
posta de maneira semelhante. Os redatores de jornais, muitas vezes jovens
bacharéis republicanos imbuídos de um projeto de sociedade na qual a capoeira
não deveria existir, decantavam a sua repressão por uma polícia ideal.
No entanto, no
Recife, as tentativas de levar adiante esses objetivos esbarraram em uma
complexa rede de relações longamente estabelecidas, em cuja análise é possível
perceber que os homens dos quais as histórias mais tarde iriam compor a memória
da capoeira da cidade tiveram trajetórias individuais por vezes muito diferentes
entre si. Nas narrativas dessas trajetórias, eles podem aparecer tanto na
polícia e na elite, quanto em lugares sociais geralmente considerados opostos a
esses, a depender da situação política ou de quem estava se referindo a eles
nas fontes, se um aliado ou um adversário. Levando isso em conta, muitas vezes o
que parece ser uma repressão a um famoso capoeira realizada por um policial em
nome da ordem, pode passar a ser visto como um conflito entre dois homens de
fama semelhante, só que um pertencente à polícia e o outro não.
No entanto, ao
contrário do início da década de 1890, quando era associado aos vícios da
Monarquia decaída, entre o final da década de 1900 e a seguinte, a capoeira se tornou cada vez menos um termo negativo o
suficiente para definir os criminosos do Recife. Era a época em que se
difundiam na cidade os discursos favoráveis à capoeiragem, enquanto exercício
ligado à identidade nacional. E apesar de mais tarde a luta de rua, sem
padronização, ter sido considerada uma característica marcante daquela prática
no Recife, é ainda nos anos iniciais do século XX que surgirá o Centro de
Cultura Física, talvez um dos primeiros do Brasil onde a capoeira era ensinada
juntamente com outros esportes.
Se não estou
certo de que essa experiência institucionalizada do Centro foi levada adiante,
os homens conhecidos como brabos e valentões na cidade continuaram atuando,
tanto na época, quanto muito depois de quando teria sido concluída a tão
comentada repressão republicana aos capoeiras. Possivelmente, foi com as
práticas transmitidas por eles que os mestres mais antigos da capoeira que se
pratica hoje no Recife se encontraram quando começaram suas atividades entre os
anos 1960 e o final dos 1970.
Esses mestres,
porém, haviam aprendido que a capoeira legítima deveria ser procurada na Bahia
e não nas brigas sem padrão ou instrumental de Pernambuco. Portanto, quando as
viram nas ruas da capital, disseram que não eram capoeira, matando em seu
discurso o que de mais próximo havia daquilo que um dia foi chamado de capoeira
do Recife.
ISRAEL OZANAM*
*Graduado
em História pela Universidade Federal de Pernambuco/UFPE (2010), foi bolsista
do Programa Institucional de Bolsas de Iniciação Científica da FACEPE, entre
2007-2010, pesquisando a capoeira no Recife no início da República. Atualmente
é bolsista de mestrado do CNPq, matriculado no programa de pós-graduação em
História da UFPE com um projeto sobre o mesmo tema. No segundo semestre de
2011, desenvolveu suas atividades de mestrado junto ao Centro de Pesquisa em
História Social da Cultura da UNICAMP, após ser contemplado com a bolsa de
Auxílio a Mobilidade Discente da FACEPE.
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